A
terapia musical no candomblé
Rosa
Maria Susanna Barbara
USP/Pós Graduação em Sociologia
Trabalho apresentado no seminário temático ST08 "Experiências religiosas
e novas espiritualidades".
VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina
São Paulo, 22 a 25 de setembro
de 1998
st08-4.
Possui verdadeira música em si só aquele que compõe uma sinfonia afinando
a harmonia do corpo com aquela da alma
Platão, Timeo, IX, 591 d.
Em vários lugares do mundo a música e a dança dominam todo o universo
do ritual. Apesar de vários estudos terem relatado o papel e a importância da música e da dança no ritual do candomblé (Barbára,
1995; Behague, 1978, 1984; Cossard-Binon, 1967, 1981; Lody, 1995; Luz, 1995; Lunhing, 1990; Martins, 1995; Omari, 1990; Segato,
1995) falta uma análise aprofundada sobre o tema.
Um estudo que abordou a função da dança e da música no ritual e a ligação
entre elas foi feito pelo antropólogo De Martino e o etnomusicólogo Carpitella, que no final dos anos 50 analisaram o tarantismo. O tarantismo foi um fenômeno observado até os anos 60 no sul da Itália, embora
segundo pesquisas recentes ainda pode ser encontrado nos dias contemporâneos (Di Lecce, 1997) em Puglia, uma região da Itália
do sul. Segundo a tradição, em momentos específicos do ano, uma tarântula (existem vários tipos dela na região) mordia os
camponeses, na maioria as mulheres, mas também os homens, usualmente nas mãos, nos pés ou no púbis. As pessoas mordidas caíam
em um estado catatônico, que encontrava solução num ritual corêutico-musical que era organizado em época preestabelecida na capela de São Paulo em Galatina. O ritual previa um longo módulo corêutico-musical
com a presença de um simbolismo onde são enfatizados pelos participantes os movimentos e os comportamentos da tarantula, tendo
também papel fundamental as cores. Procurando abordar a complexidade do fenomeno
do tarantismo De Martino desenvolve uma analise que aborda varias dimensões: a historico-religiosa, a social, a psicologica
e a psiquiatrica, conduzendo a pesquisa com uma equipe multidisciplinar. O ritual do tarantismo pode ser definido como terapêutico na interpretação feita por De Martino. As conclusões de De Martino oferecem hipoteses
importantes para pensarmos a função da música e da dança em rituais públicos, em particular na sua dimensão psicologica
- terapeutica.
Segundo ele, o modelo corêutico-musical servia como uma técnica
protetora em um quadro magico-religioso, funcionando como meio de proteção contra as crises através do acionamento de modelos
tradicionais de gestos, sons, figuras corêuticas, ritmos e melodias. Além disso
funcionava como instrumento de evocação e de controle socialmente admitidos e operantes cada vez que percebia-se a crise do
tarantismo.
De Martino trabalha
com a relação entre crise e som no ritual. Para ele a crise é o momento em que
a tarântula toma posse do corpo e deixa o indivíduo em um estado descrito como catatônico ou de grande agitação. Para ser
resolvido esse estado tem que ser inserido num
contexto ritual onde a música desenvolve o papel da organizadora da desordem e a dança expressa a ordem.
Nesse estudo utilizamos algumas
das suas observações para a investigação da dimensão terapêutica do candomblé. Entendemos que no candomblé pode-se pensar
a crise enquanto chamado do orixá que promove a suspensão da identidade cotidiana. Seguindo as indicações da música que prepara culturalmente o fiel a ser possuído, as iniciadas resolvem terapeuticamente a crise,
deixando o orixá dançar no seu corpo ao longo do ritual. Durante o fenômeno do transe, o corpo da filha ou filhou-de-santo torna-se o próprio orixá superando a dicotomia corpo/espirito, forma/conteúdo.
Objetivo desse artigo é mostrar a ligação que une a música e a dança na resolução da crise no contexto do ritual, oferecendo
uma resolução que prevê a suspensão da identidade cotidiana para dar espaço a
uma nova, a identidade do orixá. Essa ligação nos leva a considerar a experiência do corpo, fundamental na construção da nova
identidade religiosa e na transformação da doença e do sofrimento em fundamento pessoal.
QUANDO O CORPO FALA
O
candomblé é uma religião fundamentada sobre crenças em divindades chamadas orixás
e sobre a procura do encontro com o sagrado via o fenômeno da possessão. O transe
no candomblé, como diz Prandi: "... pelos menos em suas primeiras etapas iniciáticas, é experiência religiosa intensa e profunda,
pessoal e intransferível. Como a dor e as paixões não-religiosas experimentadas, não pode ser mensurado nem descrito, a não
ser metaforicamente e indiretamente" (Prandi, 1991: 171).
Segundo a filosofia
do candomblé, o homem deve estar em contato contínuo e harmônico com a natureza, que fala aos mortais através de vários tipos
de mensagens e através das suas vibrações captadas pelo corpo. Os seus ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua, fundamental para a aprendizagem esotérica, que começa desde os primeiros contatos com
o terreiro e continua ao longo da vida toda. Tendo como base o contexto cultural
holístico do candomblé, o corpo está diretamente relacionado a uma divindade e, por
extensão, a um dos elementos naturais primordiais e aos demais elementos a ele associados, como relatam Barros e Teixeira
(1992: 43). O corpo é percebido como uma das manifestações das divindades e por
isso sagrado e construído segundo padrões culturais ao longo do caminho religioso e da iniciação, quando necessária.
Sendo, para a filosofia do candomblé, o corpo humano uma cópia das formas e das energias do cosmo, os próprios elementos (ar, água, terra, mata e fogo) juntam-se segundo arquétipos diferentes. As palavras de Pelosini (1994:94) aplicam-se bem a essa concepção do corpo humano: ...o universo (macrocosmo)
e o homem (microcosmo) são criaturas similares, que obedecem às mesmas leis como um tipo de fantástico e perfeito relógio
cósmico que marca com harmonia os ritmos universais". Assim cada parte do corpo
tem um significado simbólico.